Em que é que o Poeta Crê
Na nossa época, o poeta, no qual se encarna o tipo mais puro da humanidade dotada de uma alma, encontra-se preso a meio do caminho entre o mundo das máquinas e o mundo da actividade intelectual organizada, como num espaço sem ar, onde está condenado a sufocar, já que o poeta é precisamente representante e paladino daquelas forças e daquelas exigências do homem às quais a nossa época declarou a mais fanática das guerras.
Acusar disso a nossa época seria um disparate. Esta não é nem melhor nem pior do que as outras. Para quem consegue partilhar os seus objectivos e os seus ideais, é um paraíso; para quem, pelo contrário, tem de lhe opor resistência, é um inferno. Para nós, poetas, é, portanto, um inferno. Se quiser manter-se fiel à própria origem e à própria vocação, o poeta não pode aderir ao mundo ébrio do sucesso que se apropria da vida por intermédio da indústria e da organização, nem sequer ao mundo da intelectualidade racionalizada que hoje predomina, por exemplo, nas nossas universidades. E posto que o único dever do poeta é o de ser servo, paladino e cavaleiro da alma, na actual fase do mundo ele vê-se condenado a uma solidão e a um sofrimento que não são para todos. A Europa tem hoje muito poucos poetas e nenhum deles é destituído de um tom de tragédia, para não falar de quixotismo. Pelo contrário, o continente formiga daquela espécie de «poetas», a predilecta dos leitores burgueses, que empregam o seu talento e o seu gosto na exaltação daqueles ideais e daqueles valores que figuram precisamente na agenda do burguês: hoje a guerra, amanhã o pacifismo, etc.
Mas entre aqueles que podem verdadeiramente definir-se como «poetas» não são poucos os que perecem, reduzidos ao silêncio, no espaço sem ar deste inferno. Outros, pelo contrário, carregam o sofrimento, reconhecem-se nele, submetem-se ao destino e não se revoltam quando vêem que a coroa de louros que, noutros tempos, os ornava hoje se transformou numa coroa de espinhos. Para estes poetas vai o meu amor, são eles que eu honro, que amo e dos quais quero ser irmão. Nós sofremos: mas não para protestar nem para imprecar. No ar, para nós, irrespirável do mundo das máquinas e na bárbara indigência que nos oprime nós sufocamos e, no entanto, não nos separamos do todo, aceitamos o sufoco e o sofrimento como a parte que nós devemos tomar nos destinos do mundo, como a nossa missão e a nossa provação. Não acreditamos em nenhum dos ideais desta época, não naquele dos generais, nem naquele dos bolcheviques, ou dos professores, ou dos industriais. Mas nós acreditamos que o homem é imortal, que a sua imagem poderá ressurgir, curada de qualquer deformação, purificada de qualquer inferno. Não tentamos explicar a nossa época, nem melhorá-la, nem amestrá-la, procuramos sempre abrir-lhe novamente, revelando a nossa dor e os nossos sonhos, o mundo da alma. Esses sonhos são, em parte, tristes sonhos de angústia, essas imagens são, em parte, visões terrificantes; mas não podemos embelezá-las, não podemos maquilhar a verdade. Isso fazem-no, à saciedade, os «poetas» que servem para entreter os burgueses. Nós não escondemos o perigo que a alma da humanidade corre, o abismo do qual essa alma está próxima. Mas também não conseguimos esconder que acreditamos na sua imortalidade.
(1929)
Hermann Hesse, in 'Uma Biblioteca da Literatura Universal'