De Ler e Possuir Livros
O facto de qualquer bocado de papel impresso representar um valor, de qualquer impressão nascer do trabalho intelectual e merecer respeito é considerado entre nós uma opinião fora de moda. Só raramente, junto ao mar ou no topo da montanha, se encontram ainda seres isolados cuja vida não foi até agora alcançada pela maré de papel e para os quais um almanaque, um pequeno manual ou mesmo um jornal constituem uma posse preciosa e digna de ser conservada. Estamos habituados a receber gratuitamente em casa uma grande quantidade de material impresso e rimo-nos dos chineses, para os quais todos os papéis escritos ou impressos são sagrados.
E, todavia, o respeito pelo livro não desapareceu. Somente nestes últimos tempos se começaram a distribuir livros gratuitamente e, aqui e ali, o livro está a tornar-se uma mercadoria vil. Por outro lado, dir-se-ia que até na Alemanha a alegria de possuir livros está a aumentar.
Que fique bem claro que estamos ainda distantes de uma recta compreensão do valor de tal posse. Aqueles que sentem relutância em gastar com os livros apenas a décima parte daquilo que reservam para a cerveja e o café-concerto são uma falange inumerável; enquanto, para outros, com uma mentalidade mais antiquada, o livro é uma espécie de relíquia para ter na melhor sala, a encher-se de poeira sobre o pequeno corte de felpa.
No fundo, todo o verdadeiro leitor também é um amigo do livro. De facto, quem é capaz de acolher com todo o seu coração um livro e de o amar quer, se puder fazê-lo que esse livro também seja seu, quer relê-lo, possuí-lo, ter a certeza de que o mesmo está próximo e disponível. Pedir um livro emprestado e lê-lo à pressa para o restituir em seguida é coisa que não apresenta dificuldades mas, na maior parte dos casos, aquilo que se leu perde-se com a mesma rapidez, ou quase, com que o livro desapareceu de casa. Há, aliás, leitores, particularmente entre as mulheres desocupadas, capazes de devorar um livro por dia: para estes, a fonte mais apropriada continua definitivamente a ser a biblioteca itinerante; na verdade, estes leitores não recolhem tesouros, não adquirem amizades, nem enriquecem a sua vida, aspiram simplesmente a satisfazer uma vontade momentânea. Esta espécie de leitores da qual Gottfried Keller nos deu uma eficaz descrição deve ser deixada entregue ao seu vício.
Para o bom leitor, ler um livro significa ficar a conhecer a índole e o modo de pensar de um ser que lhe é estranho, procurar compreendê-lo e, se possível, torná-lo seu amigo. Na leitura dos poetas, especialmente, aquilo que ficamos a conhecer não é decerto apenas um pequeno âmbito de pessoas e de factos mas, em primeiro lugar, o próprio poeta, o seu modo de viver e de ver, o seu temperamento, a sua fisionomia interior e, por fim, também a sua escrita, os seus meios artísticos, o ritmo dos seus pensamentos e da sua língua. Há quem, de um modo ou de outro, seja conquistado por um livro, quem comece a conhecer e a compreender o seu autor, quem entabule uma relação com o mesmo: só a partir deste momento o livro começa a desenvolver sobre esse leitor o seu verdadeiro efeito. Por isso, este último não irá cedê-lo nem esquecê-lo, irá, pelo contrário, conservá-lo, ou seja, irá adquiri-lo, de modo a poder relê-lo, a poder reviver nesse mesmo livro, quando sentir necessidade disso. Quem compra com base nestes critérios, quem procura sempre para si próprio só aqueles livros cujo tom e cuja alma tenham conseguido tocar o seu coração deixará bem cedo de devorar livros indiscriminadamente e sem um fim preciso e, em vez disso, com o decurso do tempo, irá reunir em seu redor um círculo de livros queridos e preciosos do qual saberá extrair alegria e conhecimento e que, em qualquer circunstância, lhe serão mais frutíferos do que abandonar-se desordenadamente à leitura casual e irreflectida de tudo aquilo que lhe caia nas mãos.
Não existem cem ou mil «livros mais belos», há, para cada indivíduo, uma escolha particular baseada naquilo que lhe é afim e compreensível, caro e precioso. Por isso, é impossível constituir uma boa biblioteca sob encomenda; cada um de nós deve seguir as suas próprias exigências e preferências, e criar, pouco a pouco, uma colecção de livros, da mesma forma que se criam amizades. Então, uma pequena colecção poderá para o leitor significar o mundo inteiro. Os leitores verdadeiramente bons foram sempre aqueles cujas exigências se restringiram a pouquíssimos livros; uma simples camponesa, que não possui nem conhece nada além da Bíblia, leu-a mais a fundo e extraiu dela uma maior soma de saber, de conforto e de alegria do que um qualquer ricaço mimado poderá alguma vez obter da sua luxuosa biblioteca.
O efeito que os livros produzem tem algo de misterioso. Qualquer pai ou educador já fez a seguinte experiência: julgou dar, no momento certo, um livro óptimo e belíssimo a um rapaz ou a um adolescente para, a seguir, se aperceber de que se enganou. 0 facto é que todos, velhos ou jovens, devem encontrar o seu próprio caminho no mundo dos livros, ainda que o conselho e a vigilância amigável possam ter alguma utilidade. Há quem consiga tornar-se íntimo dos poetas muito cedo, enquanto outros precisam de longos anos antes de constatarem o quão doces e singulares tais leituras são. É possível começar com Homero e acabar com Dostoiévski ou vice-versa, é possível crescer na companhia dos poetas e acabar por passar para os filósofos ou vice-versa: os caminhos são inúmeros. Porém, só existe um critério, um único caminho para formar e desenvolver o próprio espírito através dos livros: é o da atenção para com aquilo que se lê, a paciente vontade de entender, a atitude humilde de quem não rejeita e permanece à escuta. Quem lê apenas por passatempo, por muito numerosas e belas que sejam as suas leituras irá esquecê-las rapidamente e dará por si pobre como dantes. Quem, pelo contrário, lê os livros como se ouvem os amigos, verá como esses revelarão os seus tesouros e se tornarão para ele uma posse íntima. Aquilo que ele ler não deslizará para longe nem será perdido, pelo contrário, irá permanecer e pertencer-lhe, irá alegrá-lo e consolá-lo, como somente os amigos sabem fazer.
(1908)
Hermann Hesse, in 'Uma Biblioteca da Literatura Universal'