Dar ao outro aquilo que não se Tem
É bastante fugidia, mas ao mesmo tempo cheia de sugestões para um itinerário interior, a frase de Jacques Lacan: «O amor é dar ao outro aquilo que não se tem.» Dir-se-ia, à primeira vista, que amar é o contrário: é investir em dar ao outro o que temos, o que temos de melhor ou, por fim, tudo quanto temos. Mas, na verdade, isso significaria ainda aprisionar o amor ao plano do ter, em vez de inscrevê-lo com radicalidade, como é da sua natureza, no território do ser.
Dar aquilo que não se tem parece um paradoxo, e talvez seja. Talvez seja mesmo impossível falar do amor sem recorrer a essa linguagem simbólica capaz de acolher a via paradoxal como caminho necessário se quisermos tocar o cerne do que nos move quando amamos. Dar aquilo que não se tem significa dizer ao outro, de uma maneira clara, confiada e extrema, a falta que a sua vida abre em nós. Significa assinalar o seu lugar único e insubstituível escavado no que há de mais profundo no nosso ser.
Os que se amam dão-se a beber não da abundância, mas sim da própria indigência e escassez. Amar é avizinhar o outro da minha sede, esse outro nome possível para descrever o desejo.
José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'