Desgastei o Teu Amor
Hoje não me atrevo a encabeçar esta carta com qualquer nome carinhoso.
Li a tua carta, e passei o dia a sentir-me como um rafeiro que tivesse levado uma chibatada no focinho. Já não durmo há dois dias, e tenho andado a vaguear pelas ruas como um cão vadio cuja dona o expulsou de casa à chicotada.
As tuas palavras são dignas duma rainha. Jamais esquecerei, em toda a minha vida, a serena dignidade da tua carta, a sua tristeza e desdém, e a completa humilhação que me causou.
Perdi a tua estima. Desgastei o teu amor. Abandona-me, então. Afasta de mim os teus filhos, livra-os da maldição da minha presença. Deixa-me voltar ao lodaçal de onde provenho. Esquece-me, e esquece as minhas palavras ocas. Volta para a tua vida e deixa-me ir só para a minha ruína. É um erro viveres com uma besta imunda como eu, ou permitires que os teus filhos sejam tocados pelas minhas mãos.
Age com a coragem que sempre demonstraste. Se decidires deixar-me, repugnada, eu saberei suportá-lo como um homem, ciente de que o mereço mil vezes, e ceder-te-ei dois terços do meu rendimento.
Começo a compreender. Matei o teu amor. Enchi-te de repugnância e desprezo por mim. Deixa-me agora entregue às coisas e às companhias que eu tanto apreciava. Não me vou queixar. Não tenho o direito de me queixar nem de erguer a vista para ti. Desacreditei-me por completo aos teus olhos.
Deixa-me. É uma desonra e uma vergonha para ti viveres com um vil miserável como eu. Age corajosamente e deixa-me. Tu deste-me o melhor que havia no mundo, mas foi o mesmo que deitar pérolas a porcos.
Se me abandonares, viverei para sempre com a tua recordação, mais sagrada para mim do que Deus. Rezarei a ti.
Nora, guarda alguma boa recordação do pobre desgraçado que te desonrou com o seu amor. Pensa que os teus lábios o beijaram e que os teus cabelos caíram sobre ele e que os teus braços o abraçaram.
Não vou assinar o meu nome porque é o nome pelo qual me chamavas quando me amavas e honravas e me entregavas a tua alma terna e jovem, para que eu a magoasse e traísse.
James Joyce, in 'Cartas de Amor (18 de Novembro de 1909)'