O Exercício da Crónica
O cronista trabalha com um instrumento de grande divulgação, influência e prestígio, que é a palavra impressa. Um jornal, por menos que seja, é um veículo de ideias que são lidas, meditadas e observadas por uma determinada corrente de pensamento formada à sua volta.
Um jornal é um pouco como um organismo humano. Se o editorial é o cérebro; os tópicos e notícias, as artérias e veias; as reportagens, os pulmões; o artigo de fundo, o fígado; e as secções, o aparelho digestivo — a crónica é o seu coração. A crónica é matéria tácita de leitura, que desafoga o leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho e uma certa disponibilidade dentro de um cotidiano quase sempre «muito tido, muito visto, muito conhecido», como diria o poeta Rimbaud.
Daí a seriedade do ofício do cronista e a frequência com que ele, sob a pressão de sua tirania diária, aplica-lhe balões de oxigénio. Os melhores cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra — os chamados essayists — praticaram o essay, isto de onde viria a sair a crónica moderna, com um zelo artesanal tão proficiente quanto o de um bom carpinteiro ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do primitivo essay, os oitocentistas ingleses deram à crónica suas primeiras lições de liberdade, casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade.
Addison, Steele, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb — estes os dois maiores — fizeram da crónica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras.
Do último, a crónica «O Convalescente» serviria bem para ilustrar o estado de espírito maníaco-lírico-depressivo do cronista de hoje, inteiramente entregue ao egoísmo de sua doença e à constante consideração de sua pessoinha, isolado no seu mundo de cortinas corridas, a lamber complascentemente as próprias feridas diante de um espelho pessimista.
Num mundo doente a lutar pela saúde, o cronista não se pode comprazer em ser também ele um doente; em cair na vaguidão dos neurastenizados pelo sofrimento físico; na falta de segurança e objetividade dos enfraquecidos por excessos de cama e carência de exercícios. Sua obrigação é ser leve, nunca vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua crónica é um copo dágua em que todos bebem, e a água há que ser fresca, limpa, luminosa para a satisfação real dos que nela matam a sede.
Num momento em que o grande mal de grande parte do mundo é o entreguismo, a timidez e a franca covardia, o exercício da crónica reticente, da crónica vaga, da crónica temperamental, da crónica ególatra, da crónica à clef, da crónica de cartola — é um crime tão grande quanto o de se vender, em época de epidemia, um antibiótico adulterado. A restauração da crónica, no espírito da dignidade com que a praticaram os «essayists» ingleses do século XVIII, deveria constituir matéria de funda meditação por parte de seus cultores no Brasil.
(Setembro de 1953)
Vinicius de Moraes, in 'Para Uma Menina Com Uma Flor'