A LÃngua não Tem Nada de Sagrado
A lÃngua tem uma história, e essa história está sempre a funcionar. Eu não quero que a lÃngua me domine, quero ser eu a dominá-la. Eu não quero que seja ela a comandar-me, quero ser eu a comandá-la. A lÃngua não é um dom de Deus; a lÃngua é um instrumento. E quando eu ouço dizer «A lÃngua é sagrada», ou ouço falar do «respeito pela lÃngua», tenho medo. A lÃngua não tem nada de sagrado, como uma enxada não tem nada de sagrado. Serve, a enxada, para eu cavar a terra; a lÃngua serve para eu falar, para eu escrever, para eu comunicar. É um meio, um meio que à s vezes surge quase como um fim; mas todas as vezes que a lÃngua surge como um fim, é preciso suspeitar. Ela, realmente, é um meio, e é preciso reconduzi-la à condição de meio que ela é, não sacralizá-la. Portanto, todos os processos de contaminação da lÃngua me fascinam. Quanto mais contaminada a lÃngua for, mais plástica se torna, e menor poder tem. Realmente, parece que usam a lÃngua como um meio, um meio para contar histórias, mas não: estão a ser utilizados pela lÃngua. A lÃngua é que sabe as histórias que quer que se conte. Porque a lÃngua tem lá todas as histórias; foram estabelecidas ao longo dos séculos. No fundo deste os poemas homéricos, desde os textos da Antiguidade Clássica, que as histórias estão por aÃ.
Rui Nunes, in 'Jornal Público, Ipsilon, 17 Novembro 2017'