Depois do Fim
Os escritores podem dividir-se entre aqueles que dizem sofrer enquanto escrevem e os que afirmam divertir-se. Podem também dividir-se entre os que escrevem para saber como termina a história que começaram, e os que só se sentam para escrever depois que desenharam, dentro da cabeça, a estrutura inteira do romance e definiram o enredo, ao mínimo pormenor. Sou dos que se divertem; sou também dos que escrevem para saber o que vai acontecer a seguir. A melhor parte do processo de escrita — pelo menos para os escritores que se divertem e escrevem para saber o fim — são as últimas páginas. O que acontece nessas últimas páginas, no instante em que diferentes e distantes fios se amarram e o enredo inteiro adquire subitamente forma e coerência, é uma espécie de prodígio que nunca deixará de me espantar.
São muitos os escritores que se deixam vencer pela melancolia depois que terminam um novo romance. Durante meses vemos crescer as personagens. Conversamos com elas. Vivemos com elas. Aprendemos com elas. E então, vira-se uma página e todas aquelas vidas se concluem. Sobra um silêncio enorme, uma imensidão de tempo por preencher.
É bem certo que essas mesmas vidas a cujo fim assistimos estão prestes a começar para os leitores. Estão sempre a começar. Começam de todas as vezes que um novo leitor abre o livro e inicia a leitura. Como cada leitor cria um livro inédito à medida que o vai lendo, em função do seu próprio mundo, essas vidas nunca são exatamente iguais.
Acontece-me muitas vezes só compreender o que escrevi depois que um leitor me conta a sua versão. Sinto cada vez mais dificuldade em falar sobre um livro que terminei de escrever. Aflige-me a fatal pergunta dos jornalistas, durante a apresentação de um título novo: «Pode-me dizer de que trata o novo livro?»
Apetece-me dizer a verdade: «Leia-o e diga-me.»
Há muitos anos, quando comecei a escrever, tinha a pretensão de que sabia. Provavelmente, acreditava nisso. Agora, se tiver sorte, vou descobrindo de cada vez que um leitor fala comigo. Por isso, sou capaz de discorrer sobre os meus romances mais antigos, como se de facto os tivesse escrito — mas não sobre os recentes. Sinto-me um impostor. Se ainda ninguém os leu, então eu ainda não os escrevi.
É difícil escapar à melancolia do criador depois do fim. Os escritores optam por diferentes métodos para tentar iludi-la. Numa entrevista recente, a romancista portuguesa Patrícia Reis explicou que antes de entregar o novo livro à editora começa outro: «É esse outro que me permite sobreviver ao luto que preciso fazer das personagens.»
Patrícia emenda um romance no outro, como aqueles fumadores ansiosos, que vão acendendo um cigarro na guimba do anterior até terminarem o maço inteiro — ou a vida.
Costumo fazer o mesmo. Semanas antes de concluir um romance começo a criar listas de projetos. No início ignorava os caminhos impossíveis. Hoje tomo nota de tudo, depois deito fora o que me parece fácil e começo a sondar as possibilidades dos caminhos impossíveis. Os caminhos impossíveis, aqueles que dão medo, são os únicos que merecem ser explorados. Escrever — como toda a viagem — é procurar o espanto.
Conheço escritores que tentam driblar a tristeza ocupando o súbito vazio com outras formas de expressão artística: pintam, fotografam, compõem fados, criam mapas de cidades imaginárias. Alguns são muito competentes nessas atividades paralelas. Bruce Chatwin fotografava bastante bem. Nabokov desenhava borboletas. Ferreira Gullar fazia colagens e cópias de telas famosas. O moçambicano Mia Couto toca violão. Valter Hugo Mãe canta fado. Outro escritor português, Afonso Cruz, dedica-se à produção de cerveja artesanal e de blues. O angolano Ruy Duarte de Carvalho, um dos maiores nomes da poesia africana em língua portuguesa, pintava belíssimas aguarelas de bois. Tenho duas dessas aguarelas, devidamente emolduradas, diante da minha mesa de trabalho. Olho para elas e viajo para o Sul de Angola.
Terminei um novo romance. Ainda terei de viver mais algumas semanas dentro daquele mundo, trabalhando com editores e revisores, corrigindo provas, mas já me comecei a despedir dele.
Sim a melancolia é inevitável, bem como o medo de não ser capaz de voltar a escrever. Faço listas de projetos. Fotografo. Pinto aguarelas - sem o talento de Ruy Duarte. Um dia destes espero voltar a escrever de novo, como se fosse a primeira vez, com a mesma surpresa, a mesma inquietação, a mesma incapacidade de perceber ao certo o que estou fazendo — até chegar ao fim, até que alguém leia e me diga.
José Eduardo Agualusa, in 'O Paraíso e Outros Infernos'