Rainer Maria Rilke
Alemanha
4 Dez 1875 // 29 Dez 1926
Poeta
4 Dez 1875 // 29 Dez 1926
Poeta
É PossÃvel Estarmos Todos Errados?
É possÃvel (...) que não se tenha visto, conhecido e dito nada de real e importante? É possÃvel que se tenha tido milénios para olhar, reflectir e anotar e que se tenha deixado passar os milénios como uma pausa escolar, durante a qual se come fatias de pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que, apesar das investigações e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na superfÃcie da vida? É possÃvel que até se tenha coberto essa superfÃcie - que, apesar de tudo, seria qualquer coisa - com um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se assemelhe aos móveis da sala durante as férias de Verão?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que toda a História Universal tenha sido mal-entendida? É possÃvel que o passado seja falso, precisamente porque sempre se falou das suas multidões, como se dissertasse sobre uma aglomeração de pessoas, em vez de falar de uma única, em torno da qual elas estavam, porque se tratava de um desconhecido que morreu?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que se tenha julgado ser preciso recuperar o que aconteceu antes de se ter nascido? É possÃvel que se tivesse de lembrar a cada um que ele, de facto é proveniente de todos os antecessores, tendo ele disso conhecimento e não devendo dar ouvidos a outros que soubessem outras coisas?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que todas estas pessoas conheçam em pormenor um passado que nunca houve? É possÃvel que todas as realidades nada sejam para elas; que a sua vida decorra, desligada de tudo, como um relógio numa sala vazia?
Sim, é possÃvel
É possÃvel que nada se saiba das raparigas que, no entanto, vivem? É possÃvel que se diga «as mulheres», «as crianças», «os rapazes» e não se faça a mÃnima ideia (apesar de toda a cultura não se faça a mÃnima ideia) de que há muito que estas palavras não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que haja gente que diga «Deus» e julgue que se trate de algo comum a todos? - E veja-se apenas dois rapazinhos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho compra outro tal qual no mesmo dia. E uma semana depois mostram um ao outro os dois canivetes, e acontece que eles só muito de longe se parecem - tão diferentemente evoluÃram em mãos diferentes. (Ora, diz a mãe de um deles a esse respeito: vocês têm sempre por força de desgastar logo tudo!). Ah, pois: é possÃvel acreditar que se possa ter um Deus sem se recorrer a Ele?
Sim, é possÃvel.
Porém, se tudo isto é possÃvel, se tem mesmo só uma aparência de possibilidade - então, por tudo o que há no mundo, é preciso que aconteça alguma coisa. O primeiro indivÃduo, o que teve estes pensamentos inquietantes, deve começar a fazer alguma coisa do que se perdeu; mesmo que seja um qualquer, certamente o menos indicado: mais nenhum há que o possa fazer.
Rainer Maria Rilke, in 'As Anotações de Malte Lauridis Brigge'
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que, apesar das investigações e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na superfÃcie da vida? É possÃvel que até se tenha coberto essa superfÃcie - que, apesar de tudo, seria qualquer coisa - com um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se assemelhe aos móveis da sala durante as férias de Verão?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que toda a História Universal tenha sido mal-entendida? É possÃvel que o passado seja falso, precisamente porque sempre se falou das suas multidões, como se dissertasse sobre uma aglomeração de pessoas, em vez de falar de uma única, em torno da qual elas estavam, porque se tratava de um desconhecido que morreu?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que se tenha julgado ser preciso recuperar o que aconteceu antes de se ter nascido? É possÃvel que se tivesse de lembrar a cada um que ele, de facto é proveniente de todos os antecessores, tendo ele disso conhecimento e não devendo dar ouvidos a outros que soubessem outras coisas?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que todas estas pessoas conheçam em pormenor um passado que nunca houve? É possÃvel que todas as realidades nada sejam para elas; que a sua vida decorra, desligada de tudo, como um relógio numa sala vazia?
Sim, é possÃvel
É possÃvel que nada se saiba das raparigas que, no entanto, vivem? É possÃvel que se diga «as mulheres», «as crianças», «os rapazes» e não se faça a mÃnima ideia (apesar de toda a cultura não se faça a mÃnima ideia) de que há muito que estas palavras não têm plural, mas apenas inúmeros singulares?
Sim, é possÃvel.
É possÃvel que haja gente que diga «Deus» e julgue que se trate de algo comum a todos? - E veja-se apenas dois rapazinhos de escola: um compra um canivete, e o seu vizinho compra outro tal qual no mesmo dia. E uma semana depois mostram um ao outro os dois canivetes, e acontece que eles só muito de longe se parecem - tão diferentemente evoluÃram em mãos diferentes. (Ora, diz a mãe de um deles a esse respeito: vocês têm sempre por força de desgastar logo tudo!). Ah, pois: é possÃvel acreditar que se possa ter um Deus sem se recorrer a Ele?
Sim, é possÃvel.
Porém, se tudo isto é possÃvel, se tem mesmo só uma aparência de possibilidade - então, por tudo o que há no mundo, é preciso que aconteça alguma coisa. O primeiro indivÃduo, o que teve estes pensamentos inquietantes, deve começar a fazer alguma coisa do que se perdeu; mesmo que seja um qualquer, certamente o menos indicado: mais nenhum há que o possa fazer.
Rainer Maria Rilke, in 'As Anotações de Malte Lauridis Brigge'
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