O Saber Ajuda em Todas as Actividades
O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admisÂsÃvel no mundo, pois supõe-se que ele em nada contribui para o beÂnefÃcio ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princÃpios e noções igualmente distantes de sua compreensão. Por outro lado, o mero igÂnorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espÃrito grosseiro, numa época e uma nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituÃdo de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o carácter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um carácter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do que as comÂposições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida, que não requerem, para ser compreendidas, profunda apliÂcação ou retraimento e que devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a virtude toma-se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um divertimento.
(...) Se, em geral, os homens se contentassem em preferir a filosofia fácil à abstracta e profunda, sem censurar ou desprezar a última, não seria, talvez, inadequado, concordar com esta opinião geral e permitir a cada homem o direito de desfrutar livremente de seu próprio gosto e sentimento. Mas, como a questão é, freqüentemente, levada mais longe, até a completa rejeição de todo o raciocÃnio profundo, ou o que é geralmente denominado de metafÃsica, passaremos a examinar o que se pode considerar razoável pleitear a seu favor.
Podemos começar por observar que uma vantagem considerável que resulta da filosofia abstracta e exacta consiste na sua utilidade para a filosofia fácil e humana, a qual, sem a primeira, nunca poderia alcançar um grau suficiente de exactidão nas suas opiniões, preceitos ou raciocÃnios. As belas-letras não são outra coisa senão pinturas da vida humana em diversas atitudes e situações, que nos infundem diferentes sentimentos de louvor ou de censura, de admiração ou de zombaria, de acordo com as qualidades dos objectos que elas colocam diante de nós. Um artista estará mais bem qualificado para triunfar no seu emÂpreendimento se possui, além de gosto delicado e de rápida comÂpreensão, um conhecimento exacto da estrutura interna do corpo, das operações do entendimento, do funcionamento das paixões e das diversas espécies de sentimentos que distinguem o vÃcio e a virtude. Por mais árdua que possa parecer esta pesquisa ou investigação inÂterna, ela torna-se, em certa medida, indispensável à queles que quiÂserem descrever com sucesso as aparências exteriores e patentes da vida e dos costumes. O anatomista apresenta aos olhos os objectos mais hediondos e desagradáveis, porém a sua ciência é útil ao pintor, quando desenha até mesmo uma Vénus ou uma Helena. Enquanto o pintor emprega as cores mais ricas da sua arte e dá à s suas figuras o aspecto mais gracioso e o mais atraente, deve ainda dirigir a sua atenção para a estrutura interna do corpo humano: a posição dos músculos, o sistema ósseo e a forma e função de cada parte ou órgão. A exactidão é, em todos os casos, vantajosa à beleza, e o raciocÃnio justo ao senÂtimento delicado. Em vão exaltarÃamos uma desvalorizando a outra.
Além disso, podemos observar em todas as artes ou profissões, mesmo as que mais se relacionam com a vida ou com a acção, que um espÃrito de exactidão, por qualquer meio adquirido, as conduz mais perto da perfeição e as torna mais úteis aos interesses da sociedade. Embora um filósofo possa viver longe dos negócios, o espÃrito da filosofia, se cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradualÂmente através de toda a sociedade e confere a todas as artes e profissões semelhante correção. O polÃtico adquirirá maior previsão e subtileza na divisão e no equilÃbrio do poder, o advogado, mais método e prinÂcÃpios mais subtis nos seus raciocÃnios, o general, mais regularidade na sua disciplina, mais cautela nos seus planos e nas suas manobras. A maior estabilidade dos governos modernos sobre os antigos e a exacÂtidão da filosofia moderna têm melhorado, e provavelmente melhoÂrarão ainda mais, por gradações semelhantes.
Se não houvesse nenhuma vantagem a ser colhida destes estudos além da satisfação de uma curiosidade ingénua, mesmo assim este resultado não devia ser desprezado, pois ele acrescenta-se aos poucos prazeres seguros e inofensivos que são conferidos à raça humana. O caminho da vida, o mais agradável e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do saber; e, quem quer que possa remover quaisÂquer obstáculos desta via ou abrir uma nova perspectiva, deve ser considerado um benfeitor da humanidade. Embora estas pesquisas possam parecer árduas e fatigantes, ocorre aqui como com certos esÂpÃritos ou com certos corpos que, por estarem dotados de grande viÂtalidade, necessitam de exercÃcios severos e colhem prazer daquilo que, para a maioria dos homens, parece penoso e laborioso. A obscuridade é, de facto, penosa tanto para o espÃrito como para os olhos; todavia, trazer luz da obscuridade, por mais trabalhoso que seja, deve ser agradável e regozijador.
David Hume, in ''Investigação Acerca do Entendimento Humano'