O Mundo Já Foi Descoberto algum Tempo Antes
Todas as juventudes se parecem umas com as outras, é na maturidade que começa a diferença, distinguimo-nos pela maneira como resolvemos essa inquietação original, como abordamos a encruzilhada dos caminhos com que a saÃda da juventude nos confronta. O tempo que perdemos, A impossibilidade de o recuperarmos. Não sabermos ao certo se o que fizemos foi perder ou ganhar. Nunca sabemos se há outra forma de amadurecer que não seja perdendo todo esse tempo, empenhando-nos nessas discussões «pour critiquer le monde avec désinvolture», com o eu sempre na dianteira, o eu como bandeira e como objectivo, embora a vida acabe depois por passar ao lado. E o meu genro não se dá conta: esta gente nunca quis saber de onde lhes vieram as coisas. Todos saÃmos de um magma originário, conhecemo-nos numa mesma caldeira e numa água parecida, mas acontece que depois a vida foi-nos canalizando sem que decerto nós próprios tivéssemos grande a coisa a ver com isso. Fazemos coisas, mas há qualquer coisa, um mecanismo, que é mais forte do que as coisas que podemos fazer. Foi o que disse no seu momento a Matias, foi o que disse à minha filha: Quando as ideias não nos deixam ver a realidade, não são ideias, são mentiras. Dizer simplesmente a Silvia: Há mecanismos que aà estiveram desde a eternidade. Os jovens esforçam-se sempre por fazer com que os mais velhos participem da sua estupefacção, da sua grande novidade: começaram a descobrir o mundo. Mas o mundo já foi descoberto algum tempo antes. Os velhos sabem-no, nós sabemo-lo.
Rafael Chirbes, in 'Crematório'