O Homem não é Exactamente Dono dos Seus Actos
A vida é assim. Acumulamos saber como as gralhas, ouvimos milhares de discos, lemos livro atrás de livro, vemos centenas de programas de televisão, folheamos milhões de revistas ao longo da vida, pensamos, informamo-nos, e a seguir morremos, e sem dúvida, se nos restar uma réstia de lucidez, pensamos também em todo o tempo que perdemos. E em que sem dúvida foi esse tempo perdido que ganhou. Podes lidar com o maior lixo e podes lidar com o mais exclusivo, e descobres que muito pouco separa uma coisa de outra, alguns graus imperceptÃveis na abertura do angulo, umas gotas menos de água de colónia, ou de uma água de colónia diferente. Como aos homens nos separa dos macacos só um não sei quê do genoma, ou até mesmo, dos ratos e das moscas - um desvio imperceptÃvel. Mas esse desvio existe. Não o podemos evitar. Um quase nada, mas decisivo, e, além disso, este exercÃcio da vida dura tão pouco, minha filha. Morres e também essa pequena diferença de ângulo desaparece. Os meus netos vão pelo mesmo caminho que os seus pais. O que me parece mais normal, sinal dos tempos. Mas agora o ideal, a mentira que se constrói na cabeça, já não tem a ver com o arsenal de valores românticos de entrega, sacrifÃcio, tudo isso que o republicanismo espanhol colheu nas literaturas do século XIX, e que nós cultivámos, os antifranquistas da minha geração e os da geração do Matias: o ideal de agora tem a ver com o egoÃsmo, com aquilo que cada um quer possuir, com o consumo, com as campanhas concebidas pelas agências de publicidade. São, queiramo-lo ou não, ideais mais miseráveis, embora talvez também menos nocivos e que, apesar de poder parecer estranho, me parecem mais próximos, ou pelo menos mais compreensÃveis. Se alguma coisa aprendi é que o homem não é exactamente dono dos seus actos. Era o que eu antes tentava dizer-te, Silvia. Há na humanidade, como na natureza, ciclos, movimentos que toda a gente vê que se produzem e que ninguém sabe como impedir.
Rafael Chirbes, in 'Crematório'