O Papel que Nos Atribuem
A genética transmite carácteres que se adaptam aos papéis que o teatro do mundo distribui a cada época. A vida pratica aquilo a que agora há quem chame castings. Atribui-te o papel que convém à peça em cena durante uma temporada, e, se a escolha for certeira, permite que tenhamos uma existência mais ou menos harmoniosa. É muito importante sentirmo-nos à vontade, soltos, em cena, e que o papel que nos atribuem condiga com o nosso carácter, e possamos fazer isto e aquilo, e dizer uma coisa ou outra, o que nos compita, sem deixar perder a réplica, antes do cair do pano, que, por desgraça, ai de nós, cai demasiado rapidamente. Se não conseguirmos que o nosso papel se adapte aos nossos talentos, o cair do pano revela-se desolador: acabamos a função como um trambolho sem graça.
Rafael Chirbes, in 'Crematório'