O Ofuscante Poder da Escrita
O sentido da literatura, no meio dos muitos que tenha ou não tenha, é que ela mantém, purificadas das ameaças da confusão, as linhas de força que configuram a equação da consciência e do acto, com suas tensões e fracturas, suas ambivalências e ambiguidades, suas rudes trajectórias de choque e fuga. O autor é o criador de um sÃmbolo heróico: a sua própria vida.
Mas, quando cria esse sÃmbolo, está a elaborar um sistema sensÃvel e sensibilizador, convicto e convincente, de sinais e apelos destinados a colocar o sÃmbolo à altura de uma presença ainda mais viva que aquela matéria desordenada onde teve origem. O valor da escrita reside no facto de, em si mesma, tecer-se ela como sÃmbolo, urdir ela própria a sua dignidade de sÃmbolo. A escrita representa-se a si, e a sua razão está em que dá razão à s inspirações reais que evoca.
E produz uma tensão muito mais fundamental do que a realidade. É nessa tensão real criada em escrita que a realidade se faz. O ofuscante poder da escrita é que ela possui uma capacidade de persuasão e violentação de que a coisa real se encontra subtraÃda.
O talento de saber tornar verdadeira a verdade.
Herberto Helder, in 'Photomaton & Vox'