A Melancolia é um Estado de EspÃrito Muito Belo
A melancolia é um estado de espÃrito muito belo. Rendo-me a ela de bom grado e com grande facilidade. Pouco ou nada no campo, onde trabalho, mas instantaneamente na cidade. Nada mais belo, a meus olhos, do que Viena e a melancolia que sempre senti na cidade... A melancolia são as pessoas que conheço há vinte anos... São as ruas de Viena. É, com toda a naturalidade, a atmosfera desta cidade de estudo. São sempre as mesmas frases que as pessoas ali me dizem, provavelmente as mesmas que eu lhes digo, num conjunto que condiciona um maravilhoso estado de melancolia. Fico sentado durante horas num jardim ou num café. Melancolia. São os jovens escritores que já não são jovens, que pertencem ao meu passado. Repara-se subitamente: lá está um que não tem nada de jovem; entrega-se como tal — assim como provavelmente eu também o faço — mas, tal como ele, não permaneci jovem. E isto reforça-se com o tempo, torna-se muito belo.
Gosto muito de visitar os cemitérios de Viena, especialmente o Cemitério Dõblinger, perto de minha casa, ou o de Neufstift am Walde. Gosto dos epitáfios, dos nomes que me são familiares. Melancolia também, quando se entra numa loja. Tal vendedora, tão assombrosamente rápida há vinte anos, e agora muito lenta, enche lentamente um simples saco de açúcar; recebe o meu dinheiro e mete-o na caixa registadora com gestos diferentes; a própria campainha da porta, não obstante ser a mesma que era antes, soa melancolicamente. Isto mergulha-me num estado que pode durar semanas. Pelo menos a mim, a melancolia afigura-se como o estado ideal, e o meio eficaz para nela cair sempre que me apetecesse seria poder tomar melancolia em pÃlulas...
Trata-se sempre da conversa com meu irmão que não teve lugar, da conversa com minha mãe que não aconteceu. Da conversa com meu pai que também não aconteceu. Da conversa com o passado que não teve lugar porque esse passado já não existe, nunca mais existirá. Da conversa com grandes frases que não teve lugar. Do diálogo com a natureza que não teve lugar, do trato com conceitos que já não funcionam, que não podem ser conceitos. Do convÃvio com a ausência de conceitos, da resistência aos conceitos. Do trato sempre incompleto com a matéria que jamais responde. Do silêncio absoluto que arruina tudo, do desespero absoluto a que não se pode fugir. Do interlocutor imaginário que construÃmos a fim de poder imaginá-lo. Da tentativa de tocar com a ponta dos dedos os objectos que se desintegram quando julgamos tê-los tocado. Do contacto com factos que se revelam erros. Da tentativa de lançar uma ponte através do tempo que nunca existiu. Da imaginação, sempre a mesma, dirigida para uma representação que deve revelar-se forçosamente falsa. Da identificação com as coisas formadas por frases, e não se sabe nada das coisas nem das frases, não se sabe nunca nada de nada. Do quotidiano, que é preciso manter a distância. Haveria que sair de tudo, não fechar simplesmente a porta atrás de si, mas bater com a porta e partir. E seria necessário que, por si mesmo, tudo se separasse de nós e desaparecesse sem ruÃdo. Seria necessário sair destas trevas que é impossÃvel, que se tornou no fim de contas totalmente impossÃvel dominar durante a vida, e entrar nessas outras, nessas segundas, nessas definitivas trevas que temos diante de nós e aguardar a sua vinda o mais depressa possÃvel, sem rodeios, sem argúcias filosóficas, entrar nelas com toda a simplicidade... e se for possÃvel, precipitar a chegada das trevas, fechando os olhos para só os reabrir quando se tiver a certeza de estar absolutamente nas trevas, nas trevas definitivas.
Thomas Bernhard, in 'Trevas'