O Medo Excita o Mal
O medo excita o mal, ainda não deste por isso? O mal, quando vê o medo, começa a relamber-se, a passar a lÃngua pelos lábios, a ficar com água na boca. Se não tiveres medo, se não o receares, o mal aborrece-se. Ele sabia-o: se não lhe tiveres medo, o mal fica deslocado, fora do seu lugar. Converte-se num carniceiro de mercado municipal, num comerciante que oferece sem apetite um produto ao seu cliente; que mata com tédio; que, antes de matar, olha para o relógio da fábrica, põe o avental, o gorro, até a máscara de pano se for preciso; que afia sem vontade as facas e, entre uma rês e outra rês, olha para o relógio para ver quanto tempo falta para ir comer alguma coisa. Um pobre homem. O assassino, o violador precisam de outras pulsações suplementares. É nessa agitação do corpo que o medo provoca que o mal cresce. Pode até acontecer que aquilo que era uma actividade indiferente se transforme em mal ao descobrir o medo no outro. Um sexo seco, quieto, mudo, não parece valer a pena ao violador, mas um sexo trémulo, que grita, não, não faças isso, que deita as mãos à cabeça, ou as põe diante da boca, que repete uma e outra vez, não não não, e que se defende, é esse que o violador ama, é o seu meio natural, o meio que o faz crescer, o medo é um terreno de cultura biológico para o mal: por favor, tem dó de mim, e o mal cresce; por tudo o que queiras, e o mal cresce dava vez mais.
Rafael Chirbes, in 'Crematório'